quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Democracia argentina não conclui cicatrização de feridas da ditadura

Carlos Werd.
Buenos Aires, 30 out (EFE).- Vinte e cinco anos de democracia não foram suficientes para cicatrizar as feridas do passado na Argentina, mas sim para honrar parcialmente a dívida contraída com as vítimas do terrorismo de Estado que assolou o país de 1976 a 83.
Trinta e três repressores da ditadura militar foram condenados e centenas de pessoas foram processadas pelos abusos cometidos pelo regime. Além disso, 95 filhos de desaparecidos já foram "recuperados" nesses últimos 25 anos.
No entanto, organizações pró-direitos humanos consultadas pela Agência Efe afirmam que os avanços mais significativos com relação a reparações dos efeitos do Governo militar ocorreram apenas a partir de 2003, graças à "decisão política" do ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007) para que fossem investigados os crimes da ditadura, que deixou cerca de 30 mil desaparecidos.
O "buraco negro" da democracia argentina tem nome e sobrenome: Jorge Julio López, um pedreiro septuagenário cujo paradeiro é desconhecido desde que testemunhou há 25 meses contra um repressor dos "anos de chumbo".
Em 1985, dois anos depois da retomada da democracia na Argentina, foi realizado o histórico julgamento das Juntas Militares, que terminou com a aplicação de penas severas aos principais personagens do regime.
No entanto, em 1986 e 1987 o então presidente Raúl Alfonsín, pressionado por rebeliões militares, impulsionou as leis apelidadas de Ponto Final e Obediência Devida, que acabariam por beneficiar cerca de mil agentes da ditadura.
A primeira lei impunha limite de tempo para o processamento de acusados de violações dos direitos humanos, e a segunda consagrava a teoria de que os oficiais de categoria inferior e suboficiais das Forças Armadas atuaram exclusivamente sob ordens de seus superiores.
"As grandes expectativas que tínhamos com Alfonsín (1983-1989) foram dissipadas rapidamente", lembra Hebe de Bonafini, presidente da Associação das Mães da Praça de Maio.
"Infelizmente, Alfonsín perdeu a oportunidade de entrar para a história do país, porque com uma mão assinou o julgamento das Juntas Militares e com a outra leis de impunidade", declara, por sua vez, Taty Almeida, líder da organização Mães da Praça de Maio-Linha Fundadora.
No entanto, Taty considera como passos positivos naquele período a criação da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, com a missão de substituir e documentar casos e provas de violações de direitos humanos, e o processo judicial contra militares de alto escalão.
"O julgamento foi impecável falando em termos legais, porque houve condenações, e também sob o ponto de vista humanitário, porque a coragem dos sobreviventes, dos ex-presos e dos exilados fez com que os argentinos abrissem os olhos", completou a líder da organização Mães da Praça de Maio-Linha Fundadora.
Tanto Hebe como Taty denunciaram retrocessos na área de direitos humanos durante as gestões de Carlos Menem (1989-1999), Fernando de la Rúa (1999-2001) e Eduardo Duhalde (2002-2003).
"Menem indultou os assassinos e afundou o país", considerou Taty, enquanto Hebe lembrou que nem Menem nem De la Rúa, a quem chama de "inepto para governar", se "dignaram a receber as Mães da Praça de Maio".
O "tempo das velhas loucas" que em 1977 saíram às ruas para exigir a divulgação do paradeiro de seus filhos chegou mesmo durante o Governo Kirchner, "o único que fez o que tinha o que ser feito" para que os crimes ligados ao terrorismo de Estado não ficassem impunes, ainda segundo a presidente da Associação das Mães da Praça de Maio.
"Seríamos ingratas se não reconhecêssemos que com Kirchner conseguimos tornar realidade reivindicações que ainda hoje não podemos acreditar", acrescentou.
"Finalmente encontramos um espaço, uma decisão política para saldar essa dívida que havia com nossos filhos", reafirmou, antes de destacar que a atual presidente, Cristina Fernández de Kirchner "aprofunda" a política de direitos humanos de seu marido e antecessor.
Pouco antes de assumir a chefia de Estado na Argentina, em 2003, Néstor Kirchner chorou e pediu perdão em nome do Estado pelo silêncio diante das "atrocidades" da ditadura e impulsionou a anulação das leis de Ponto Final e Obediência Devida.
O Parlamento as declarou nulas em agosto de 2003, e dois anos depois o Supremo convalidou essa decisão, o que supôs a reabertura de centenas de processos motivados por delitos cometidos durante a "guerra suja" e o retorno à prisão de vários ex-militares.
O máximo tribunal argentino completou sua tarefa anulando em 2007 os indultos concedidos em 1989 e 90 por Menem a personagens do regime militar e dirigentes guerrilheiros. EFE

Nenhum comentário: